Livro: “A Violência da Revolução Verde” – Vandana Shiva
Livro: “A Violência da Revolução Verde"” – Vandana Shiva
“A universalização da proteção da vida é um imperativo ético.”
Vandana Shiva é indiana, PhD em
física e ativista pela diversidade de sementes e pela autonomia dos
agricultores frente ao modelo de ciência, tecnologia e economia agrícola imposto
pelas multinacionais e instituições ligadas aos centros do sistema mundial
capitalista (colonialismo agrícola?), para resumir uma problemática complexa em
uma sentença. Ela é fundadora do movimento Navdanya (http://navdanya.org/), que quer dizer “nove
sementes”, ou “novo presente”, dedicado ao fortalecimento das redes de
preservação e compartilhamento de sementes, soberania alimentar, agricultura
sustentável, transmissão de conhecimentos e preservação de saberes
tradicionais. Além disso, o movimento atua na conscientização sobre os riscos
da engenharia genética e defendendo direitos populares contra a biopirataria e
pelos direitos alimentares.
Em “The Violence of the Green
Revolution”, publicado pela primeira vez em 1991, Shiva traça um panorama da
história e dos efeitos da introdução da revolução verde na província indiana do
Punjab, a partir do qual desdobra observações de alcance global, que pintam um
quadro alarmante dos caminhos que já tomava então a política agrícola promovida
pelos atores centrais no cenário mundial durante a guerra fria, e que vinha
sendo implementada pelo Estado indiano.
O período após o fim da Segunda
Guerra Mundial foi marcado pela emergência da noção de terceiro mundo, e de uma
política por parte do chamado ocidente capitalista, centrado no Atlântico
Norte, de promover o desenvolvimento nos
países descritos como “subdesenvolvidos” com o objetivo de prevenir a expansão
do socialismo. A revolução verde fez parte dessagrande estratégia.
Promovida por uma articulação
entre institutos de pesquisa, fundações como a Ford e a Rockfeller e organismos
internacionais, a revolução verde consistiu na substituição de variedades de
plantas e métodos de cultivo autóctones por um pacote tecnológico composto pela
introdução de novas “variedades de alto rendimento” (High Yielding Varieties ou
HYVs) , plantas que supostamente aumentariam a produção alimentar, mediante a
aplicação de fertilizantes químicos como insumo. A política agrícola da
revolução verde se caracterizava pela introdução de sementes produzidas em laboratório,
com pouca variabilidade genética, e que geravam plantas dependentes da
aplicação de altas quantidades de fertilizantes químicos e água, além da
substituição do policultivo de alimentos tradicionais com consórcio e rotação
de variedades pela monocultura, basicamente de arroz e trigo.
O sistema de monocultivo e a base
genética restrita resultaram na explosão das pragas, obrigando ao uso de
grandes quantidades de pesticidas. A substituição da adubação com matéria
orgânica local pela importação de fertilizantes químicos, a necessidade de
comprar as sementes, ao invés de aproveitar aquelas produzidas localmente, e a
demanda pelos pesticidas, além da substituição dos cultivos alimentares
diversificados por poucas variedades destinadas a mercados externos erodiu a
soberania alimentar dos camponeses indianos, tornando-os dependentes de crédito
e sujeitos a flutuações de preços no mercado internacional. Milhares de
camponeses se suicidaram após se endividarem.
Além disso, as novas variedades
introduzidas demandavam uma quantidade cada vez maior de insumos, deixando
atrás de si um solo degradado pelo abandono das antigas práticas ecológicas de
adubação e manejo. A demanda explosiva de água que caracterizava as novas
variedades de plantas e técnicas de cultivo levou a necessidade de construção
de megaprojetos de represas e aquedutos, que por sua vez dispararam conflitos
políticos pela distribuição de recursos, além de provocar fenômenos como a
desertificação e o encharcamento. A promessa do milagre de produtividade e paz
da revolução verde erodiu-se rapidamente, deixando detrás de si um rastro de
degradação ambiental e endividamento.
A introdução da revolução verde
levou à centralização do poder, sujeitando os camponeses a decisões tomadas em
altas esferas do Estado indiano, bem como em âmbitos internacionais de poder, o
que motivou conflitos que ganharam feições étnicas, com as revoltas da
comunidade Sikh. A diminuição do cultivo das antigas variedades consorciadas
que resultou da sua substituição pelo monocultivo privou as populações de
fontes tradicionais e seguras de nutrientes, e a vasta diversidade genética de
plantas cultivadas tradicionalmente, e desenvolvida localmente ao longo de
milênios, começou a se perder frente à ubiquidade de pouquíssimas variedades,
desenvolvidas em centros de pesquisa e replicadas aos milhões a partir de umas
poucas matrizes. Essa uniformização produziu vulnerabilidade, expondo os
cultivos à ação de pestes, que passaram a atacar as monoculturas com
agressividade crescente, e a perda de um rico patrimônio construído ao longo de
muito tempo.
Vulnerabilização genética e socioeconômica,
dependência dos agricultores em relação a instituições de crédito e mercados
flutuantes, degradação dos solos, uso irracional da água, centralização do
poder levando a conflitos políticos e étnicos, erosão da soberania alimentar
pela substituição de cultivos diversos e nutritivos por monoculturas dirigidas
ao mercado, desempoderamento do agricultor. Esses foram alguns dos efeitos
nefastos da revolução verde sobre a região do Punjab, segundo Vandana Shiva.
Em contraste, recorrendo às
fontes históricas, ela aponta como os primeiros especialistas britânicos que
avaliaram o estado da agricultura na Índia, então uma colônia britânica, Sir
Alfred Howard e Dr John Augustus Voelcker, expressaram admiração pelas técnicas
de cultivo autóctones, considerando-as sofisticadas e descartando a
necessidade, e mesmo a capacidade, de os britânicos introduzirem melhorias
nesse campo.
Por detrás de toda essa
problemática histórica está a imposição de uma forma específica de saber
científico, aquela produzida desde os centros de poder do ocidente capitalista,
sobre nações e populações camponesas do então chamado terceiro mundo, também
descrito como mundo subdesenvolvido, ou, no eufemismo corrente, “em desenvolvimento”.
A antiga narrativa sobre a pretensa superioridade cultural do Ocidente, e a
alegada neutralidade política da ciência, servem para legitimar a imposição de
um tipo de tecnologia agrícola que atende a interesses econômicos e políticos
específicos. Por outro lado, os atores que promovem essa tecnologia descrevem
as tecnologias e saberes autóctones como primitivos, de modo a afirmar a sua inferioridade.
Assim, sob a máscara da
neutralidade científica e do discurso do desenvolvimento, impõe-se um pacote
tecnológico que degrada os sistemas ecológicos, submete os agricultores a uma
condição dependente, aniquila o patrimônio genético, desestrutura padrões
culturalmente específicos de relações sociais, substituindo-os por esquemas de
poder estatal centralizado e pela uniformidade e instabilidade das relações do
mercado global capitalista.
Na época em que escrevia o livro,
no fim dos anos 1980, Shiva já denunciava o novo round da Revolução Verde, que
se anunciava como a solução para a diversidade de problemas criados pela
introdução do primeiro pacote tecnológico. Marcada pela bioengenharia dos
transgênicos e capitaneada por corporações multinacionais como Monsanto e a
Syngenta, a nova onda da revolução verde na Índia prometia revolucionar a
agricultura através do “melhoramento” genético e da integração direta entre
produção agrícola e a grande indústria alimentar. Um exemplo do tipo de tecnologia
desenvolvido nessa época são as plantas transgênicas resistentes à herbicidas,
que vinculam sementes com agrotóxicos, gerando monopólios de mercado e
induzindo à aplicação cada vez maior de venenos nos alimentos que comemos e no
ambiente que compartilhamos com inúmeras outras espécies. Além disso, o
processo de patentemento de sementes por grandes empresas usurpa populações
camponesas do mundo de um patrimônio genético socialmente construído ao longo
de milênios, privatizando a vida e submetendo-a ao jogo voraz do lucro
capitalista.
Shiva critica todo esse processo
do ponto de vista técnico e político, apontando para a necessidade imperativa
de se fortalecerem caminhos tecnológicos distintos deste, que promovam
sustentabilidade, diversidade e descentralização. A autonomia do agricultor e a
saúde da sociedade parecem estar intimamente ligados à aplicação de tecnologias
agrícolas descentralizadas, baseadas na diversidade genética e de espécies, na
utilização de insumos orgânicos internos, de origem local, em resumo, no manejo
ecológico dos sistemas agrícolas. Os princípios que guiam as escolhas políticas
que se realizam nesse sentido devem ser orientados por critérios socialmente
definidos, e não pela lógica fria e gananciosa do grande capital internacional,
que se esconde sob o disfarce do progresso científico e da inevitabilidade
econômica. Ao romper com a noção enviesada de que a tecnologia proposta pelos
grandes centros capitalistas é necessariamente a mais avançada e adequada para
todos os povos – descolonizar o saber -, podemos abrir nossa mente para a
existência, e pertinência, de diversas formas de produzir alimentos que apontam
para formas mais humanas e sensatas de organização social e de relacionamento
com a natureza e com os recursos do planeta em que vivemos.
Comentários
Postar um comentário